O desafio da imersão

Filosofia
O desafio da imersão

Li  uma interessante obra voltada para escritores e produtores de arte em geral, "Hamlet no Holodeck" e a obra me proporcionou reflexões interessantes sobre minha visão do movimento espírita.

Nós repetidamente insistimos na necessidade da leitura da codificação espírita como base primordial e essencial para o conhecimento do Espiritismo. Essa é a condição pela qual o individuo se torna espírita e não há como imaginar alguma alternativa.

Identificamos também que o conhecimento sobre a Doutrina Espírita está restrito em sua esmagadora parte a um seleto grupo sócio/econômico que tenha capacidade de adquirir livros e compreender seu intrincado vocabulário. Ou seja, o duo de condições financeiras e base de cultura formal. E nesse caso, as camadas sociais desprovidas disso ficam também desprovidas de um contato essencial e instrutivo sobre a Doutrina Espírita. Veda-se, inclusive, o acesso dos analfabetos à letra da DE, infelizmente.

Contudo, mesmo entre os espíritas não se percebe um aprofundamento desejável das questões de base, quando há uma preferência pelas obras espiritualistas menores, por requererem também menor ou nenhum esforço intelectual (já que não passam nenhum tipo de informação racional).

Há, então, algum fenômeno interferindo na plena divulgação da Doutrina Espírita. E analisando mais profundamente, com mais profundidade sociológica, pode-se perceber que há um agravante para a questão cultural: outro fator, que é o motivacional.

Quando se analisa a massificação de doutrinas, filosofias políticas e religiões na História esse fenômeno começa a despontar. Trata-se da Imersão; este conceito nos foi apresentado pela obra supracitada.

Embora o livro não aborde o que analisamos neste momento, ele conceitua o fenômeno da imersão como sendo aquele no qual o expectador, sujeito passivo, ou alvo, é convidado a uma relação totalmente sensorial com o que vamos chamar aqui de "enredo". No caso das ideologias e religiões, o enredo é o próprio objeto ideológico.

Como se dá isso?

Desde os tempos mais remotos depois de Cristo, o que conhecemos como religião católica utiliza ostensivamente do simbolismo visual, sonoro, olfativo e táctil. Uma igreja católica, em qualquer dimensão, é uma câmara de imersão.

Ao ali entrar, o sujeito se depara com toda a mensagem ideológica do catolicismo, contida numa atmosfera ímpar e uniforme. Ele vê vitrais ou pinturas com as estações da "paixão de cristo". Vê uma arquitetura solene, pois mais simples que seja uma capela de interior rural, onde o teto sempre fica bem acima das cabeças do público. Vê, ainda, um altar representando uma autoridade e acima deste altar uma figura entalhada, produzida em alto relevo ou de todas as formas, tridimensional, de um Jesus crucificado.

Enquanto isso ocorre, a única fonte de água é sacralizada, há um tom solene até sobre ela. Há velas, que sempre simbolizaram a ligação do humano com uma entidade superior. Há os odores próprios de flores ou incenso. Há os bancos de madeira, para o indivíduo se humilhar sem o conforto que a mensagem pretende passar. Invariavelmente há imagens de santos, anjos ou cruzes na altura correta para permitir que o sujeito toque os pés. E há a música...

Então, nós temos todos os sentidos físicos mergulhados naquele ambiente, absorvendo uma mensagem repetidas vezes. Longe de ser exercício de condicionamento meramente cerebral, acaba sendo espiritual. Os resultados são mais do que óbvios nos últimos dois mil anos.

Numa outra situação, o sujeito tem, por outro lado, o regime comunista soviético ou o nacional socialista da Alemanha. Nesse caso, a câmara de imersão é todo o cotidiano do cidadão. Em todas as esquinas, nas escolas, nas rádios, na música, na produção teatral, na paisagem em geral, se vê o que se pretenda que o povo veja, se ouve o que o público deve ouvir. O exemplo mais vivo hoje é a Coréia do Norte, uma câmara de imersão tão fechada que seus cidadãos ignoram que existam outros países vivos do lado de fora das fronteiras.

Então, repetindo, o conceito de imersão requer o uso de todos os sentidos.

A mesma coisa ocorre com o Espiritismo?... Só a ineficácia da mensagem... Não existe uma "ambiência espírita" que seja capaz de gerar uma câmara de imersão. Talvez, se forçarmos a situação, as câmaras de atividades mediúnicas pudessem assim ser comparadas. Mas, como elas também não utilizam dos órgãos sensoriais e são fechadas ao público, não podemos estabelecer uma similaridade.

Então, onde queremos chegar?

É que hoje o conceito de imersão se traduz em um desafio para a linguagem de massa. Não pode servir a estruturas ideológicas como produto ideológico, mas como instrumento metodológico de trabalho.

Imersão hoje nada mais é do que o desafio da interatividade, da capacidade da mensagem chegar de todas as formas possíveis ao individuo, de tal maneira que ele possa vivenciá-la e compreendê-la.

A interatividade requer o uso dos sentidos físicos. Em termos modernos, requer ao menos a simulação do uso dos sentidos físicos até onde isso possa ser possível.

O exemplo mais ilustrativo disso, infelizmente fica restrito a quem possa conhecer os diversos episódios das diversas séries "Jornada nas Estrelas": uma estrutura contida em todas as naves espaciais de todas as séries - e que dá nome ao livro citado - o Holodeck.

É mais do que evidente que holodeck’s não existem - ainda - mas a eficácia da interatividade como meio transmissor e principalmente SEDIMENTADOR de idéias é notória.

Então, num mundo onde o maior país espírita do planeta contém apenas 1,4% de sua população como espírita e ainda assim, destes não são muitos os que de fato conhecem sua base de sustentação ideológica - a codificação espírita - qual é o papel da interatividade?

Este é o desafio. Costumeiramente diante de todas as pessoas que nos buscam pedindo ajuda, ao fim nós sugerimos que tal pessoa leia a codificação. Isso é o correto e o honesto a se fazer, sempre.

Mas, numa época em que os próprios livros comerciais só se tornam sucessos quando viram filmes, temos a realidade de que a leitura em si é um sistema passivo e um desafio à disciplina e concentração, tanto quanto à disponibilidade de tempo. Hoje, nas cidades médias e grandes, o individuo sai de casa as 6 horas da manhã para suas atividades, retorna as 19 ou 20 horas, se higieniza, se alimenta, interage com a família e vai ler... Quando?...

Parte do desafio, então, seria tornar a literatura espírita disponível para os jovens enquanto ainda são jovens e dispõem de tempo livre?... A resposta poderia ser sim, se os livros da codificação espírita fossem o Livro Vermelho de Mao, imposto na China a todas as crianças e adolescentes. Se os jovens em sua média comportamental fossem, de fato, ávidos leitores, a própria Educação jamais seria um desafio para nenhum país do mundo.

No século XXI a questão proposta seria: como tornar a codificação espírita atraente, estimulante, didática e acessível?

Pela arte?... Se a arte conseguir traduzir uma ciência, tudo bem... Teríamos, enfim, a famosa "arte espírita?... Teríamos a codificação espírita fielmente traduzida em musica, teatro e cinema?

Pelo uso de mecanismos tecnológicos?... Bem, está aí a internet de forma maciça - mas ainda assim, restrita a uma camada sócio/econômica da população.

A esta altura, o leitor atento já descobriu que não há nenhuma pólvora a ser descoberta aqui. Este mesmo desafio é o dos profissionais da propaganda e da Educação. E não há solução à vista, nos limitando a apresentar o problema.

O problema é: o livro não é mais uma mídia interessante. O livro não é mais uma mídia que disponha do tempo de que dispunham antes seus usuários. O livro, ao requerer concentração visual, perde eficácia ao não utilizar mecanismos sonoros, tácteis.

E, no entanto, só podemos dispor... de livros para difundir a codificação espírita.

O leigo dirá: "ah, mas filmes como o do Chico Xavier" vão estimular a leitura. Ao que responderemos: NÃO!!!,  Não estimulam a leitura nem mesmo dos livros do próprio Chico Xavier, ou teríamos uma explosão de vendas de livros no Brasil. E todos aqui sabemos que isso não aconteceu...

Tornar os ensinamentos da codificação mais acessíveis é o desafio. Não, não se trata de tornar nada mais "mastigado" ou mais "confortável".

Trata-se de nos ocuparmos em modernizar a linguagem midiática para tornar aqueles cinco livros plenamente compreensíveis por todos e não engolidos de forma sintética, como os famosos "resumos literários para vestibular".

Vamos ainda ter que dedicar alguns anos de análise para promover a imersão doutrinária espírita.

E por causa disso, por ora a plena compreensão do Espiritismo ainda continua restrita a quem possui a disciplina, paciência, cultura e tempo para compreendê-la.

E de tudo isso, talvez o "tempo" é que seja o item a ser mais trabalhado e tornado eficaz. Podemos exigir disciplina, paciência e até facilitar a formação cultural do próximo. Mas, como providenciar-lhe tempo, se ele ainda deve prover a família de sustento e atenção?

O desafio está lançado. E não fazemos a menor idéia de quando a solução se apresentará.

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